segunda-feira, 25 de março de 2013

QUANDO BEIJO AS ESTRELAS II

 

Aquela noite fora um dos raros momentos de privacidade 

entre nós. Estávamos sozinhos na varanda da sua casa e eu 

ouvia extasiado ela discorrer sobre temas complicados com a 

graça típica das mulheres espirituosas e superficiais. Eu 

estava apaixonado e talvez por isso inclinado a ouvir a sua

 voz como um feitiço e suas palavras como um oráculo pleno

 de sentidos misteriosos. Ela sabia da minha paixão declarada

 em poemas plagiados e cartas afetadas mas, afirmando tudo

 não passar de uma efêmera fascinação, tratava-me como um

 admirador inofensivo e como um critério para a sua vaidade.

 Sua serenidade emocional, sua habilidade em lidar com os 

sentimentos e a minha tímida passividade conferiam a suas 

opiniões uma sagacidade psicológica quando o assunto em 

questão era o meu revelado amor. Ela quase me convencia

 estar eu equivocado sobre o que verdadeiramente sentia; em

 outros assuntos ela não era tão dominante assim. Nessa noite

o tema era mais prosaico, o riso, e eu lhe falava do

s meus comediantes preferidos. Disse-lhe não gostar muito 

de Charles Chaplin, de haver algo de maldoso em seu olhar e

 muita previsibilidade na desenvoltura do personagem 

“Carlitos”. Ela contestou-me dizendo:

- Mas você gostava dele quando criança!

- Sim. Gostava muito
.
- Algo então lhe ocorreu bloqueando a espontaneidade do

 seu riso. Ainda hoje as crianças gostam muito dele.

-Sim, Lílian – respondi quase revoltado por ela tentar

 psicologizar o meu senso de humor – algo me ocorreu mas

 não foi nenhum bloqueio. Eu mudei. As pessoas mudam
.
-Mudam parcialmente. A criança que sorria com Carlitos

 ainda convive contigo e é hoje uma criança triste.

-Não! A mudança pode ser total.

-Uma metamorfose? – Perguntou ela com ironia

- Talvez. O corpo substitui todas as suas células em um

 determinado intervalo de tempo, a nossa fisionomia pode se

 tornar irreconhecível; até mesmo o cérebro, antes

considerado imutável, apresenta uma grande plasticidade se 

for estimulado
...
-E a memória? Ela é o castelo inexpugnável da nossa 

identidade e perdê-la significa enlouquecer. A metamorfose 

total que você defende pode ser o cominho sem volta da 

loucura.

-Devagar em suas conclusões! Eu posso ter uma memória

 curta, não me lembrar de como eu era antes de uma longa 

mudança e nem por isso me tornar um “desmiolado”. Essa 

identidade que você supõe ser o estofo da nossa razão não

 passa de uma grande ilusão, pois as ilusões são intrínsecas

 à própria razão, já diziam os velhos kantianos. Quem pode

 me garantir que eu fui mesmo a criança que hoje penso ter

 sido? Assim como apagamos os traumas da nossa memória, 

podemos fantasiar um pouco sem contudo cruzar as

fronteiras do patológico. A nossa tendência em imag

inar a infância como uma fase paradisíaca, - quando um

 exame mais atento revela ser a infância uma idade plena de 

problemas, dores e sofrimentos – expõe um pouco essa

plasticidade criativa onde se misturam lembranças e

 fantasias...

-É possível. – Lílian parecia subitamente mergulhada em

 tristes recordações – Sempre imaginei a minha infância 

como feita de dias e noites encantadas mas também reco

rdo-me de uma constante fantasia. Antes de dormir, quando

 bem menina, ficava na cama sonhando com uma máquina

 fantástica onde houvesse um único botão: você o apertava e 

PLIM!... Morria. Sem dor, sem médicos, sem nada. Como

posso ter sido feliz se dormia com um pensamento destes?

Nesse momento, insidioso como um ladrão noturno, eu

 mudei o tom do meu discurso e passei a ser mais incisivo e 

pessoal:

-As pessoas mudam, sim. Você irá mudar muito, Lílian, e,

 quem sabe, mudar a ponto de amar-me um dia..
.
Ela voltou-se e me olhou como uma criança triste. Pela

 primeira vez senti suas convicções abaladas. Talvez ela já

 estivesse mudando as inclinações do seu coração, talvez

 esperasse um gesto meu, efusivo, arrebatado e capaz de lhe

 provar a intensidade do meu confesso amor, mas era eu

 quem não acreditava em mudanças assim tão rápidas e me

 despedi com esperanças de ver a sua metamorfose 

consumada em poucos dias e, então, tê-la de corpo e alma.

 De fato, ao encontrá-la semanas depois, ela estava muito

 mudada e digo “muito” com um grande pesar, pois ela não

só se tornou a Lílian que me amava naquela noite mas

 continuou a se modificar e já não sentia então por mi

m nem amor, nem vaidade, nem mesmo a curiosidade 

habitual... nada! Nada além da profunda indiferença que 

nutria agora por todos os pretendentes que não fosse 

Frederico, o seu atual namorado. Assim foi que perdi um

 grande amor por agir pouco e falar demais. Hoje, muitos

anos passados, gostaria de lhe dizer que eu não mudei nada e 

continuo apaixonado. Gosto de imaginar que ela me amou 

sob o tênue véu de uma noite. Isso ajuda-me a compor meus

poemas afetados.  

@Cassidy Brook (Cassiano Ribeiro)

2 comentários:

  1. Respostas
    1. Que bom!!!Um dos objetivos é este,para atrair mais leitores.Queria tanto que os visitantes comentassem!
      Eu é que agradeço por disponibilizar a sua obra literária,Cassiano.Isso é magnífico!

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