Cassiano Ribeiro Santos
Foi em uma noite de inverno que o Anjo me apanhou pelos
ombros e me levou sobre as nuvens azuis, até uma longa e desolada planície que
parecia não ter fim. Do alto que estava pude ver uma enorme quantidade de
homens espalhados, ceifando os talos da monótona vegetação – trigo, me pareceu
– a dominar toda a visível extensão. Formavam feixes cada vez maiores e corriam
desvairados sempre em busca de mais talos para ceifar. Um vagaroso raio dourado
de sol no horizonte indicava um fim de tarde cuja noite não demoraria a
devorá-lo. Alguns homens, a maioria deles, começavam a perder os talos
colhidos, no afã de colher outros. Vi alguns já esgotados, cuidando de
construir com eles um abrigo para lhes proteger do frio inclemente que soprava
do lado escuro, da noite fria que se aproximava. Estavam todos construindo seus
abrigos quando a noite súbita desabou. Uns começaram a construir muito cedo,
dispondo de pouco capim e tiritavam de frio dentro de seus finos casulos,
Outros, colhendo mais do que podiam carregar, começaram a construir muito tarde
e foram colhidos pelo ar gelado antes de estarem prontos seus abrigos; e muitos
ainda, perdendo mais pelo caminho do que conseguiam juntar, movidos pela ânsia
e desespero, descobriram não ter material suficiente para construir. Raro eram
aqueles que juntaram a quantidade suficiente e souberam a tempo construir o
abrigo de suas almas. O Anjo do Senhor então me explicou aquela visão. Os ramos
ceifados eram a experiência que colhemos na vida. Ela nos servirá como estofo
da sabedoria a nos abrigar contra as intempéries da velhice, e fornecer o calor
que encontramos na recordação dos momentos mágicos que vivemos. Muitos de nós,
na ânsia de viver cada vez mais, vamos deixando esquecidas na memória tudo que
vivemos, sem refletir, sem saber que nenhuma memória é eterna e que tudo um dia
se perde sem o zelo da reflexão. (Pensei em Sócrates:”Uma vida não refletida
não vale a pena ser vivida!” Mas temi citar um pagão perto do Anjo.) Outros
homens, muito cedo ainda, sem matéria suficiente e antes da hora, se entregam
ao passado, se contentam com suas parcas e limitadas vidas, sendo atropelados
pelo futuro que chega com suas mudanças avassaladoras. Sábios são aqueles que
vivem o bastante para conhecer a natureza humana e sabe a hora certa de parar
em um canto, construir um palácio de reminiscências e nele, no castelo da
reflexão e na alegria de tudo reviver ao recordar, provar do delicioso vinho da
sabedoria! Tentei olhar para a face do Anjo mas seu esplendor começou a me
cegar. Acordei com o sol, por uma fresta no telhado, a brilhar no meu rosto O
mesmo sol que germina o trigo e aquece nossas vidas. Decidi naquele dia mesmo
largar minha vida dissoluta de croupier em cassinos clandestinos e me dediquei
desde então à vida de escritor memorialista! Estou juntando meu trigo! Domingo, 28 de Agosto de 2011
às 20:51 ·
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