sábado, 5 de outubro de 2013

FICÇÕES TEOLOGAIS

Autor:Cassiano Ribeiro Santos



Em meados de 1952, durante a guerra da Coréia, o Almirante Cassidy Brooks aportou em uma distante e praticamente desconhecida ilha no arquipélago do Pacífico conhecido como Ilhas Fiji. Ali encontrou uma comunidade de primitivos melanésios autóctones e sem absolutamente contato com os homens ocidentais. O Almirante comenta que, apesar dos estudos feitos confirmarem que eles não possuíam de fato nenhum contato com a civilização ocidental, nenhum traço lingüístico, algum costume ou mesmo alguma lenda que revelasse um vago conhecimento sequer de outras culturas; esse ilhéus, entretanto, adorava uma cruz, ostensivamente tatuada nos corpos, fincada nas praças e no alto dos penhascos limítrofes da ilha com o oceano. Tão logo dominou rudimentos da língua nativa, o almirante percebeu que muitos dos valores e conceitos do cristianismo existiam incorporados ao repertório daquela exótica religião: um único Deus de origem Celestial, a compaixão e misericórdia pelos inimigos, o consórcio de anjos alados como mensageiros desse Deus e sua ressurreição de entre os mortos. Isso muito intrigava o antropólogo amador – na verdade, um militar em missão de guerra – pois, a mitologia e os ritos de outras tribos do arquipélago, do mesmo tronco lingüístico e filogenético destes, não possuíam absolutamente nada parecido, sendo todos animistas, politeístas ou mesmo absolutamente pagãos, como os famosos e hedonistas anfitriões do Almirante Cook. Após conquistar a confiança do sacerdote dessa pequena tribo, perdida em uma nebulosa e sonífera ilha do Pacífico, O almirante Cassidy conseguiu que os sacerdotes do culto da Cruz o levassem até o santuário onde havia a Cruz verdadeira que só os iniciados podiam adorar “ in sitio”. Em uma brumosa manhã, galgaram os penhascos onde havia a entrada de uma gruta e nela penetraram, logo atingiram uma espécie de átrio natural com um reverente altar no calcário esculpido. A luz das tochas revelou o objeto cultuado sobre ele. Uma imensa caixa de madeira, envernizada com ceras vegetais para não apodrecer, contendo uma enorme Cruz vermelha desenhada. O Almirante logo percebeu se tratar de um caixote da Cruz Vermelha que, durante a Segunda guerra mundial, era atirado de pára-quedas, por aviões americanos, sobre ilhas remotas e desertas, na esperança de salvar eventuais soldados e refugiados que por ali estivessem alojados. Todos costumavam conter alimentos enlatados, medicamentos de primeiros socorros, roupas e cobertores. Não foi preciso cavilar nenhuma teoria para concluir o que se passou ali, entre os habitantes autóctones. Passaram a adorar a Cruz como signo de um Deus provedor ( In Hocus Signus Vince! Diria um desses lapões se latim soubessem!). O que ele não conseguiu explicar pelo resto da sua vida – suas memórias ainda hoje dormitam em uma gaveta sem serem publicadas -, era a semelhança que encontrou entre os sentimentos dos ilhéus e os de outros cristãos do ecúmeno. Compaixão, humildade, perdão, esperança e Fé em uma sobrevivência da alma pessoal, após um juízo universal... Valores sensivelmente antagônicos com a cultura primitiva e belicosa dos povos parentes mais próximos da vasta etnia polinésia. Chegou-se a especular, em uma série de correspondências com missionários e comandantes militares da época, sobre a hipótese de folhetos e revistas ilustradas terem acompanhado tais caixotes, permitindo alguma fabulação imagética. Não há registros de tal atitude no protocolo da Cruz Vermelha que sempre se pautou na isenção de cultos ou propaganda de qualquer espécie em suas atividades, como ainda hoje se pode perceber. Na velhice, Cassidy se convencera de que o simbolismo da Cruz, operando nos vestíbulos desconhecidos da alma humana, é capaz de, per si, suscitar bons sentimentos e percepções transcendentais sobre o Reino dos Céus anunciado por Jesus e seus apóstolos. Suas análises desse procedimento, pautado no farto material que coletou entre os nativos – fragmentos de mitologia, confissões sacerdotais, conselhos e simulacros de orações – tudo isso constitui o grosso de suas anotações memoráveis e contêm, além de um notável catecismo, os germes de uma singular psicologia da mente primitiva capaz assombrar os empoeirados corredores das nossas faculdades Humanistas. Pouco antes de falecer, se converteu ao catolicismo, embora de família protestante, justamente pela iconofilia mágico-religiosa que havia descoberto, estudado e comprovado sua eficácia. Seu filho, que se tornou um cineasta, provavelmente entusiasmado com essa possibilidade da imagem da Cruz possuir as virtudes pastorais reservadas eminentemente ao Verbo, me convidou para elaborar um roteiro cinematográfico sobre as descobertas do seu pai. Estou lendo as suas memórias e profundamente impressionado. Pode ser que essa madrugada o canto do galo venha a me encontrar mergulhado nessa história, contrito e em beatífico entusiasmo!

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