CARTOGRAFIAS SENTIMENTAIS
Por: Cassiano Ribeiro Santos
Virginia Woolf dizia que os discursos tornavam-se empolados quando as
práticas de amor dos homens diminuíam de intensidade. Eis aí um bom
exemplo: LÍLIAN - Aquela noite fora um dos raros
momentos de privacidade entre nós. Estávamos sozinhos na varanda da sua
casa e eu ouvia extasiado ela discorrer sobre temas complicados com a
graça típica das mulheres espirituosas e superficiais. Eu estava
apaixonado e talvez por isso inclinado a ouvir a sua voz como um feitiço
e suas palavras como um oráculo pleno de sentidos misteriosos. Ela
sabia da minha paixão declarada em poemas plagiados e cartas afetadas
mas, afirmando tudo não passar de uma efêmera fascinação, tratava-me
como um admirador inofensivo e como um critério para a sua vaidade. Sua
serenidade emocional, sua habilidade em lidar com os sentimentos e a
minha tímida passividade conferiam a suas opiniões uma sagacidade
psicológica quando o assunto em questão era o meu revelado amor. Ela
quase me convencia estar eu equivocado sobre o que verdadeiramente
sentia; em outros assuntos ela não era tão dominante assim. Nessa noite o
tema era mais prosaico, o riso, e eu lhe falava dos meus comediantes
preferidos. Disse-lhe não gostar muito de Charles Chaplin, de haver algo
de maldoso em seu olhar e muita previsibilidade na desenvoltura do
personagem “Carlitos”. Ela contestou-me dizendo: _ Mas você gostava dele
quando criança! _ Sim. Gostava muito. _ Algo então lhe ocorreu
bloqueando a espontaneidade do seu riso. Ainda hoje as crianças gostam
muito dele. _ Sim, Lílian – respondi quase revoltado por ela tentar
psicologizar o meu senso de humor – algo me ocorreu mas não foi nenhum
bloqueio. Eu mudei. As pessoas mudam. _ Mudam parcialmente. A criança
que sorria com Carlitos ainda convive contigo e é hoje uma criança
triste. _Não! A mudança pode ser total. _Uma metamorfose? – Perguntou
ela com ironia. _ Talvez. O corpo substitui todas as suas células em um
determinado intervalo de tempo, a nossa fisionomia pode se tornar
irreconhecível; até mesmo o cérebro, antes considerado imutável,
apresenta uma grande plasticidade se for estimulado... _E a memória? Ela
é o castelo inexpugnável da nossa identidade e perdê-la significa
enlouquecer. A metamorfose total que você defende pode ser o caminho sem
volta da loucura. _Devagar em suas conclusões! Eu posso ter uma memória
curta, não me lembrar de como eu era antes de uma longa mudança e nem
por isso me tornar um “desmiolado”. Essa identidade que você supõe ser o
estofo da nossa razão não passa de uma grande ilusão, pois as ilusões
são intrínsecas à própria razão, já diziam os velhos kantianos. Quem
pode me garantir que eu fui mesmo a criança que hoje penso ter sido?
Assim como apagamos os traumas da nossa memória, podemos fantasiar um
pouco sem contudo cruzar as fronteiras do patológico.
A nossa
tendência em imaginar a infância como uma fase paradisíaca, - quando um
exame mais atento revela ser a infância uma idade plena de problemas,
dores e sofrimentos – expõe um pouco essa plasticidade criativa onde se
misturam lembranças e fantasias... _É possível. – Lílian parecia
subitamente mergulhada em tristes recordações – Sempre imaginei a minha
infância como feita de dias e noites encantadas mas também recordo-me de
uma constante fantasia. Antes de dormir, quando bem menina, ficava na
cama sonhando com uma máquina fantástica onde houvesse um único botão:
você o apertava e PLIM!... Morria. Sem dor, sem médicos, sem nada. Como
posso ter sido feliz se dormia com um pensamento destes? Nesse momento,
insidioso como um ladrão noturno, eu mudei o tom do meu discurso e
passei a ser mais incisivo e pessoal: _As pessoas mudam, sim. Você irá
mudar muito, Lílian, e, quem sabe, mudar a ponto de amar-me um dia...
Ela voltou-se e me olhou como uma criança triste. Pela primeira vez
senti suas convicções abaladas. Talvez ela já estivesse mudando as
inclinações do seu coração, talvez esperasse um gesto meu, efusivo,
arrebatado e capaz de lhe provar a intensidade do meu confesso amor, mas
era eu quem não acreditava em mudanças assim tão rápidas e me despedi
com esperanças de ver a sua metamorfose consumada em poucos dias e,
então, tê-la de corpo e alma. De fato, ao encontrá-la semanas depois,
ela estava muito mudada e digo “muito” com um grande pesar, pois ela não
só se tornou a Lílian que me amava naquela noite mas continuou a se
modificar e já não sentia então por mim nem amor, nem vaidade, nem mesmo
a curiosidade habitual... nada! Nada além da profunda indiferença que
nutria agora por todos os pretendentes que não fosse Frederico, o seu
atual namorado. Assim foi que perdi um grande amor por agir pouco e
falar demais. Hoje, muitos anos passados, gostaria de lhe dizer que eu
não mudei nada e continuo apaixonado. Gosto de imaginar que ela me amou
sob o tênue véu de uma noite. Isso ajuda-me a compor meus poemas
afetados
Nenhum comentário:
Postar um comentário