Na sonífera ilha dos Atlantes, no alto das montanhas, entre dois contrafortes de granito e neve eterna, um vale miraculoso se estendia em suave declinação. Abetos e pinheiros projetavam seus galhos pelas frestas escarpadas dos paredões onde o sol da tarde arrancava cintilações de ouro e o luar, reflexos de prata. Sob qualquer ângulo que o enquadrasse, o vale era um paraíso selvagem, com filetes d’água escorrendo dos penhascos e se evaporando antes de chegar à copa das árvores, picos pontiagudos e platôs de indefiníveis formatos. Um vapor brumoso de águas ocultas apagava ao longe os contornos finais do vale dando-lhe a feição de um mundo originário. No centro, em contornos suaves e circulares, um grande e plácido lago recebia a água doce de córregos sibilantes sob as árvores. Era o lago ALESS, majestoso espelho onde o céu virginal se coroava nos adereços da floresta espraiada em suas margens. Ali, em lisérgicos efeitos, duplicava-se o baile infantil das borboletas amarelas, os galhos mirabolantes de árvores tortuosas e mergulhões riscavam sua face, piscando olhos circulares a varrer toda a extensão de sua água laminar. Também no lago ALESS, à noite, refletia-se a vastidão dos espaços infinitos, duplicando o inconcebível número de estrelas e enchendo de opressão o peito do viajante que o contemplasse. Era o caso do gigante Cururu, último descendente da raça dos Oldar que percorria solitário a terra virgem em reinações e folguedos. Todas as tardes, após almoçar meia dúzia de elefantes e antes de jantar um rebanho de búfalos, ele sentava no alto da montanha Sils-druin e passava horas contemplando o vale encantado e seu lago de prístinas águas. Ao longo de sua cinematográfica extensão, costumavam passar tempestades a se perderem no horizonte, resolvidas em vapores e murmurando seu desgosto... Então o sol voltava a brilhar sobre os cabritos selvagens pastando nas encostas e, já inclinado sobre uma falha nas montanhas, acender o lago com sua luz dourada. Era uma euforia no entardecer. A magia movente do vento vesperal agitava as árvores, a neve dos picos parecia se derreter na luz dourada e um cortejo de narcejas riscava curvilíneas linhas a fremir de arrepios a alma infantil do grotesco gigante. Não durava muito e o manto da noite, feito um cobertor, fazia a cama para a lua se deitar; e ela vinha embevecida no espelho d’água se embriagar em sua própria luz. Quase não se movia, fascinada com sua imagem lânguida e radiante sobre a água doce, vez ou outra vazada por um peixe de prata que saltava como um beijo antes de voltar para o fundo do lago. Cururu dava pungentes suspiros de amor quando a rainha do céu se despedia deixando o lago perfurado por uma miríade de pontos luminosos: eram as estrelas que ali cintilava seu etéreo e sutil fogo azul como se vindas de suas águas profundas e no céu projetadas. Entre elas, fechando o espetáculo da noite, nuvens de pirilampos saiam das margens, cada um pinçando seu reflexo no local exato de uma estrela, com a simultaneidade de um passe de mágica que arrancava aplausos do gigante atabalhoado. Era noite alta quando Cururu, extasiado, voltava para sua caverna no outro lado da cordilheira e nela penetrava com a retina ainda excitada de feéricos lampejos com os quais iria iluminar os cavilosos sonhos de sua alma. Uma noite, namorando o lago ALESS, um estalo rompeu as paredes gordurosas do seu cérebro e uma idéia luminosa invadiu sua mente, arrastando com ela sua vontade soberana de gigante que tudo pode: “Vou levar esse lago lindo para mim, ele enfeitará minha caverna e dormirei ao lado de suas imagens maravilhosas!”, pensou;. Então o gigante se aproximou com passos trovejantes e agachou-se nas margens de ALESS. Encostou seus grossos lábios no espelho mágico e, como um longo beijo de amor, sugou em poucos minutos toda a água que ali havia. Suas bochechas inflavam na exata proporção em que o vale ia ficando enxuto, deixando ver o lodo, as conchas, um barco naufragado, uma âncora enferrujada, uma inexplicável bota,... Cururu nunca se pareceu tanto com um monstro como nessa hora. Sua bochecha estava maior do que o seu próprio corpo e ele rastejava pelo vale derrubando árvores, sulcando um desfiladeiro entre as montanhas que não resistiam ao seu peso medonho. Era noite alta quando chegou todo ferido pelas pedras à porta da sua caverna. Penetrou até o centro, feito da mais felpuda escuridão, tateou buscando os lugares já por ele conhecidos e, tomado de reverência, despejou lentamente o conteúdo de sua pantagruélica bochecha. A água sibilou para em seguida retumbar em tonitruantes cascatas amplificadas nos adros da caverna e se perder em seu labirinto de calcário. Não demorou muito e todo o lago foi transplantado. Com o queixo apoiado nas mãos, Cururu esperava deitado e ansioso que a agitação cessasse para transformar o escuro chão da sua caverna em um espetáculo de cores, formas e luz. Em vão esperou o luar de prata, a aurora de dedos róseos, os flamingos vermelhos e a batalha dos reflexos dourados. Entendeu enfim que todo o brilho de ALESS era um reflexo do mundo vivo que o circundava, que sua luz era inseparável dos seres que existiam ao seu lado, e não viu, na escuridão da sua alma, duas lágrimas, salgadas de egoísmo, escorrer para a imperceptível água do lago ALESS, substância e écran de todas as suas miragens.
Fonte: http://pt.shvoong.com/books/1978926-gigante-enamorado/#ixzz1qjDQXH1B
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